Na tela do monitor saltavam as últimas palavras daquele processo judicial que, depois de anos, finalmente chegava ao fim. Orgulhosa por sua eloqüência, pausou para ler o parágrafo enquanto levava à boca sua xícara com um pequeno envelope de Taylors of Harrogate sabor menta. O jogo de porcelana chinesa pertencera a um famoso estadista norte-americano. Ela o arrematou em sua última passagem pela Sotheby’s.
Dona de um discurso que misturava descaso e sofisticação como se ambas tivessem o mesmo sentido, Mariza podia ser considerada uma mulher feliz. Em seu meio, era reconhecida como a grande filha do Coronel Batista. Seu pai, respeitado militar, morreu em circunstâncias ainda não totalmente esclarecidas para a imprensa. Ela nunca teria condições de provar seu assassinato, feito pelos próprios colegas de farda, depois do coronel ter se recusado a torturar um estudante preso na Operação Gutenberg.
Enquanto sorvia o líquido esverdeado com gestos meticulosos, procurava por erros de digitação ou talvez substituir alguns termos para impressionar o juiz. Sabia que a empresa que estava defendendo era culpada pela morte de um dos funcionários num grave acidente durante os testes com uma máquina alemã sucateada e que foi descaradamente declarada como nova em folha na nota fiscal, para burlar a alfândega. Para Mariza, pro bono nunca existiu. Mariza só entendia o pro domo sua, uma vez que agere invitus nemo compellitur.
Gastava semanalmente com cosméticos uma quantia que poderia ser convertida em duzentas cestas básicas. Tal comparação nunca lhe ocorreu. Dona de vários imóveis espalhados pelo país, entre eles uma mansão no Morro da Urca cuja última reforma ultrapassou o orçamento inicial de setecentos mil dólares, Mariza sustentava um dos seus amantes há mais de quinze anos, como se ele também fosse uma de suas propriedades. Vicente era considerado o mais inteligente dos seus animais de estimação.
Nos últimos dias quase não lhe dava atenção. Estava ocupada por causa da repentina morte do marido, numa fatal overdose de heroína que foi transformada em acidente doméstico nas notas dos jornais. Seu corpo foi encontrado na banheira por uma das empregadas, que barganhou seu silêncio pelo pagamento das prestações do carnê da casa e um carro popular zero quilômetro. Os suburbanos são cruéis, pensava Mariza ao se lembrar da chantagem feita por Ivone, que mais tarde se arrependeu por não ter extorquido uma quantia maior da patroa megera.
Desligou o computador, guardou alguns livros na estante do estúdio e seguiu para o quarto, subindo a escada de mármore sentindo-se radiante, única e principal testemunha da conquista de seu império. Com Cesar fora da sua vida, poderia voltar para Vicente sem preocupações e finalmente viajar para a Austrália e Nova Zelândia como sonhava desde sua adolescência. Era fascinada pela imagem exótica e selvagem daquela gigante ilha desértica e seus vizinhos continentais.
Tirou a roupa e delicadamente entrou na banheira. Ela e Cesar já não compartilhavam a cama desde o nascimento de Thiago. Num dia rotineiro de trabalho, Mariza teve que voltar em casa para pegar alguns documentos. Antes de seguir para o fórum, teve a oportunidade de casualmente flagrar Cesar sendo enrabado por Samuel. Depois do episódio, o motorista só conseguiu manter seu emprego revezando suas escapadas entre os dois cômodos.
Enxugou-se com muita delicadeza e sem pressa, como se a pele fosse de papel crepom. Com uma toalha na cabeça e vestida em seu robe de seda, o espelho refletia o busto de uma divindade grega. Perséfone com cabelos negros e olhos tristes. Contemplava-se de forma meticulosa, procurando por marcas de erosão e pensando na próxima aplicação de botox depois do bem sucedido lifting.
Terminado o ritual dos cremes, secou os cabelos e livrou-se do robe. Nua, sentiu-se pronta para dormir e começar uma nova fase em sua vida. Sentada na cama, tocou a púbis e desceu os dedos buscando mais prazer. Amanhã será um dia dos infernos naquele tribunal. Desistiu do desejo. Antes de deitar, tirou do criado mudo um frasco de cor laranja e engoliu o tranqüilizante num movimento reptiliano. Com o corpo de lado e as pernas encolhidas, seu corpo lembrava um feto gigante pronto para voltar ao ventre.
Bêbado e mergulhado num ódio diabolicamente humano, Thiago entrou em casa como um destes desastres causados pela natureza. Jogou o caderno em cima do sofá e foi à geladeira para pegar uma cerveja. Sentia-se humilhado. Mariza cortou sua mesada pela metade, depois de descobrir alguns cigarros de maconha em sua gaveta e que o dinheiro para pagamento dos custos com a faculdade estava sendo usado para patrocinar festas regadas a uísque, garotas de programa e cocaína. O que farei agora com apenas dois mil e quinhentos reais a cada trinta dias? Tá louca? O que os meus amigos vão falar de mim? Essa filhadaputa me paga.
Com uma arma na cintura, subiu correndo para o quarto da mãe. Na porta, olhou para a figura indefesa e teve pena, como se estivesse observando um cão sarnento e amputado. Passos controlados, jogou-se de leve na cama para não acordá-la. Beijou a testa da mãe e em seguida veio uma coronhada. Cobriu a cabeça de Mariza com o travesseiro. Disparou dois tiros. Um filete de sangue escorria lento pelo rosto e brilhava na luz opaca. Acariciou os cabelos negros de Mariza como se estivesse pedindo desculpas. Colocando o indicador dentro do buraco feito por um dos disparos, Thiago levou o mesmo dedo até o nariz para cheirar a morte. O cheiro do sangue lembrava o dia que seu pai o violentou.
Réu primário, cursando o último ano de Direito e sobrinho de um dos promotores mais respeitados do país, Thiago cumpriu três anos de reclusão. Para afastar sua imagem destrutiva, freqüenta as reuniões do Novo Lar dos Jovens Políticos Católicos, uma instituição religiosa badalada por causa da presença dos membros da alta sociedade, influentes em Brasília e que mantém relações com a embaixada norte-americana e a Santa Sé.
Visto como um exemplo a ser seguido e dono de uma dialética que lembrava o estilo de sua mãe, Thiago conseguia ser comovente em seus discursos mesmo quando não cheirava as duas carreiras matinais. Recuperado do trauma, segundo o laudo do seu psicanalista, tem se dedicado a promover ostensivamente o turismo sexual com crianças no litoral nordestino, patrocinado pelo tio e alguns de seus irmãos de fé.